Logo Ilha de Fide preto e branco x

 

 

“Gente honesta. Gente humilde. Assim são os pescadores do Este que se lançam devotamente ao Oceano da Libertação para fazerem merecer o pão que colocam na mesa. Haja engenho e haja arte! Haja epopeia que faça jus a tal coragem! À coragem de quem vive do Mar, de quem vive à mercê de correntes, ventos e marés, sem poder antever os seus repentinos sopros e rodopios, à mercê das suas trapaças e arapucas, à mercê dos mais variados mitos e superstições e defendendo-se apenas com a arma da esperança. A esperança de voltar a pisar a sua amada região, saboreando a areia quente a enterrar-se pelos seus pés gelados, deslumbrados pelos rostos de quem deixaram ao partir, curados pela leveza que é soltar aquela pesada âncora das suas vidas e começar de novo numa Terra de paz e liberdade. A vida não lhes é dada de bandeja, mas antes ganha no ofício, no serviço diário, e os sacrifícios que lhes carregam o corpo de suplício são a pureza e a luz que lhes enchem a alma de inabalável júbilo. Ah gente humilde. Gente de fé. Assim são os pescadores do Este”

Não se sabe ao certo quem escreveu o texto. Desconfia-se que tenha sido algum poeta no Norte algures no tempo da história de Fide. Quem quer que tenha sido, parece que o escreveu a contemplar o dia-a-dia destes tais pescadores do Este, como um pintor que sem sequer pedir ou notificar observa atentamente a pose natural do retratado dando cuidadosa atenção aos mais ímpares pormenores da sua pessoa para depois transferi-los da retina para a tela. E na “tela” deste poeta estariam decerto estes dois pescadores, tal é a semelhança e aplicabilidade do texto às suas vidas:

– Rápido Tagueu, mete as redes a bordo! Quero o peixe vendido antes do anoitecer!

O Capitão de Navio, Manuel Boa Memória, vassalo e sobrinho da Casa Boa Paz, da região Este, sairia naquela manhã para pescar com o seu amigo e camarada de pescas, Tagueu, um bastardo da Casa Solidarie que havia sido mandado para o Este quando ainda era bebé. Como em qualquer dia normal partiria na sua pequena Caravela, A Canção do Vento, para o Estuário da Muralha, conhecido por dividir o Norte e o Este na grande maioria da sua fronteira, e por ser bastante largo, tornando-o numa autêntica muralha entre as duas regiões. O Estuário da Muralha – ou simplesmente “O Muralha” como a maioria o trata – dá acesso ao enorme Oceano da Libertação. Por sua vez, o Oceano da Libertação liga Fide a Absentia, terra da qual nenhum habitante de Fide se atreveu a aproximar desde a fuga dos seus antepassados aquando da sangrenta revolução.

Manuel Boa Memória gostava da tranquilidade do mar e de passar tempo a beber rum e a cantar com os seus companheiros, bem como de ouvir e contar histórias e lendas sobre o Oceano da Libertação e sobre Absentia. Apesar do mar lhe ter dado uma costela taberneira acentuada, tinha tido uma educação de qualidade tal como qualquer nobre em Fide, o que explicava a sua enorme cultura histórica da Ilha.

Era também o Capitão d’A Canção do Vento, um protótipo de Caravela bem mais pequeno que o habitual e muito adaptada para a pesca em Alto-Mar. Tinha sido construída há uns bons anos com madeira do Oeste – que lhe diziam os especialistas que era a mais resistente da Ilha –, e pertencia à Casa Boa Memória desde então. Qualquer Capitão de Navio exigiria uma tripulação de pelo menos dez marinheiros para a levar para Alto-Mar, mas Manuel e o seu espírito naval diziam-lhe que ele, Tagueu e mais três companheiros chegavam e sobravam para a tarefa.

– Acho que comi alguma coisa estragada – desabafou, com a mão na barriga.

Tagueu passou por ele carregando um barril pesado pelo ombro.

– Isso é a ressaca da noite de ontem Capitão, não se engane a si próprio.

O Capitão aproveitou a deixa para ceder à preguiça e sentou-se em cima de um barril de mantimentos. Ficou a observar Tagueu e os companheiros a carregarem a sua Caravela e não foi capaz de esconder um certo orgulho no olhar ao ver o trabalho que era dedicado à atividade. O melhor exemplo disso era o magrinho Tagueu. Era mulato, alto e tinha um sorriso largo com um espaço entre os dentes. Careca e com uma barba muito fraca, tinha os olhos grandes e cinzentos, e andava sempre com olheiras a notar-se. Apesar do seu aspeto fraco, Tagueu era um excelente trabalhador – um “pau-mandado”, como troçava Manuel habitualmente. Não era um homem de muitas palavras: era bem mais discreto que Manuel, e gostava apenas de falar pela certa, quando dominava o tema, o que fazia com que só falasse do Mar e de pescas.

Os experientes pescadores eram dos melhores que havia no Este. A região em si caracterizava-se por contar com os melhores navegadores e por ser a mais dependente da pesca. A partida dava-se no chamado “Porto da Meduza”, localizado em Buonipachem, que era a capital da região Este. O ponto de chegada seria o “Porto de Galantis”, localizado na cidade de Galantis que era a segunda maior da região. 

Os dois pescadores saíram com a certeza antecipada de que em Alto-Mar as condições não estariam brIlhantes. Navegaram até chegar ao Oceano da Libertação e a partir daí foram em direção noroeste, em condições atmosféricas adversas. Manuel e Tagueu deram o seu melhor para pescar os salmões e os robalos de um dia normal, e assim o fizeram. O talento e a experiência facilitavam – afinal, tinham mesmo jeito para a coisa. 

Infelizmente para eles, o clima dava sinais de piorar a passos largos, e depois de ter entrado por uma enorme nuvem cinzenta a pairar no ar, A Canção do Vento viu-se rodeada por uma impetuosa tempestade. 

Manuel tinha estado distraído a estudar a cartografia da época. Tudo porque havia alguns indícios, baseados num tratado assinado há muitas gerações, antes sequer da descoberta de Fide, de que existia uma Terra por descobrir em falta naqueles mapas. Era como uma competição de “caça ao tesouro” para os Capitães do Este. Sempre que se metia na sua mais que habitual rotina de pescas de Alto-Mar punha-se a sonhar com a aventura de lá ir um dia. Se não fosse por essa Terra, apelidada por muitos como “a Terra fantasma”, provavelmente a dupla que tinha com Tagueu nunca se teria formado – uma história longa que envolveu o conceituado Capitão Alfredo, da Casa Pescador de Robalo. Mas quando veio cá para fora o Capitão pôde constatar que tinha um assunto consideravelmente mais urgente com que se preocupar do que a Terra fantasma. A ondulação já estava fortíssima e os experientes pescadores tinham que se agarrar ao que podiam para não serem cuspidos para fora da pequena Caravela. Ouviam-se enormes rajadas de vento, chovia desalmadamente e os trovões diziam “presente” num cenário absolutamente apocalíptico. 

A tripulação passou um mau bocado, daqueles que só quem sente a dor diretamente na carne e que vive o medo diretamente no espírito consegue ter uma total perceção do real sofrimento. O marinheiro mais velho a bordo chegou mesmo a gritar depois dum trovão, que nos seus vastos anos de experiência nunca vira uma tempestade tão forte. Mas como eles diziam no Este “depois da tempestade vem a bonança” e assim foi: passados uns minutos que pareceram horas de aflição, A Canção do Vento furou pelas negras nuvens e pôde respirar de novo em segurança. 

Manuel e Tagueu foram mais uma vez decisivos para encontrar o sol radioso que os esperava para fazer companhia no resto do caminho até Casa, mas acabaram a desviar-se bastante da rota que tinham em mente. Manuel pôs-se a fazer contas de cabeça que Tagueu simplificou: chegariam a Galantis bem mais tarde do que queriam. Mas o momento era de gratidão, tinham apanhado um susto valente.

Beijados pela luz, pelo calor e pela paz, o marinheiro mais velho a bordo não resistiu em puxar da palavra e deixar a pairar no ar um pouco da sua bagagem:

– Sem momentos de dor que sabor teria este Sol? 

Uns segundos de silêncio e reflexão foram interrompidos por uma das tão características intervenções cirúrgicas de Tagueu. Neste caso citando uma frase que lhe ficara do tal Capitão Alfredo, da Casa Pescador de Robalo, que já tinha morrido há tempos.

– “O homem que cai ao fundo do poço é miserável, o que de lá sai é imparável”.

– Quem fala assim não é gago! – bradou Manel da outra ponta. Não perdera a ocasião para se voltar a afundar na questão cartográfica – Quando formos ao bar, pago-vos uma rodada de cervejas, hoje foi para os rijos – e a boa disposição acompanhou a Caravela brindada pela guarda de honra que lhe prestava o sol.

Ainda no regresso à Ilha, já no pôr-do-sol desse dia, Tagueu vislumbrou uma figura longínqua a boiar no meio do Mar. O sol tornava a figura um pouco turva e Tagueu não conseguiu identificar o que era.

– Ei, Manuel, olha além! Que é aquilo?

Manuel olhou para onde apontava Tagueu e imediatamente orientou A Canção do Vento na direção da figura desconhecida. Ao aproximarem-se mais um pouco, perceberam que se tratava de um homem deitado no que outrora fora uma jangada e agora era simplesmente um pedaço de madeira. Se Manuel e Tagueu fossem cidadãos do Oeste presumivelmente já estariam a tremer de medo pela possibilidade de ser um “monstro de Absentia” – isto porque a população e, de um modo particular, os pescadores do Oeste eram geralmente bastante supersticiosos acerca da antiga morada dos seus antepassados. Já o Este era conhecido por ser uma Terra de gente rija e destemida e os tripulantes da pequena Caravela não tinham nenhum forte sentimento, a não ser curiosidade. Diz um provérbio do Este que “Quem vive no Leme já pouco ou nada teme” e aplicava-se por completo àquela turma d’A Canção do Vento. Ao aproximarem-se, começaram a ouvir uma voz que numa rouquidão extrema gritava:

– Ajuda camaradas! Ajuda!

Ao chegarem perto do Náufrago desconhecido, estendido no que sobrava da sua jangada de madeira, os dois pescadores ajudaram-no a subir a bordo d’A Canção do Vento e aguentaram a sua curiosidade para deixá-lo repousar um pouco ao invés de o encherem com as perguntas que tinham. Deram-lhe uns robalos, que foram devorados rapidamente, e depois um pouco de água. Deixaram-no à sombra a descansar e acabou por adormecer em pouco tempo. O homem estava pálido e magro, e aparentava estar no Mar há semanas. Tinha uma fina camada de músculo e pele que lhe deixavam os ossos algo salientes. Não se podia dizer que estivesse completamente esquelético, mas era visível que estava bem mais magro do que já fora. Deveria ter uns trintas e poucos, mas com aquele aspeto – com aquele cabelo e barba enormes –, mais parecia ter sessenta. Quando a noite já ia longa, o Náufrago acordou sem que os outros notassem. Acordados, mas sonolentos, estavam apenas Manuel e Tagueu na esperança de chegar ao Porto de Galantis pela madrugada. Manuel que já tinha a cabeça a pesar-lhe para cima do leme e lutava intensamente para manter os olhos abertos, não o viu a aproximar-se, e deu um sobressalto quando ouviu uma voz digna de alguém que acabou de tomar um fortíssimo bagaço:

– Para onde vão vocês?

Manuel fez cara de espantalho. Virou-se para Tagueu e os dois olharam hesitantes um para o outro pois não sabiam como reagir. O Capitão acabou por responder não evitando alguns gaguejos:

– Para a região Este de Fide, Senhor. Vi pelo tipo de madeira da sua jangada e vejo agora pelo seu sotaque que não é de lá, calculo que não saiba de que Terra falo…

O Náufrago acenou a cabeça indicando que não. Manuel aproveitou a monótona noite de navegação em modo cruzeiro para explicar “resumidamente” a origem da Ilha de Fide ou pelo menos, o que sabia do que os seus avós lhe haviam contado. O Capitão já não poupava na tagarelice quando contava as suas façanhas nas pescas, imagine-se a partilhar a história do nascimento de uma civilização dividida em quatro Reinos. A dada altura entrava por apêndices de história intermináveis que davam azo a novos apêndices e a raciocínios mirabolantes, daqueles que até o recetor mais atento não tem outra opção senão vestir a cara de chimpanzé: sorrir e acenar com a cabeça. E Tagueu só pensava para si “Oh Manuel, tem lá este gajo pachorra para te estar a ouvir…”. Mas cedo reparou que se enganava, o Náufrago ouvia atentamente com imprevisível interesse e, sem darem por isso, era o próprio que fazia as perguntas:

– Mas quem governa essa tal região de Este?

– Com o passar dos anos e o aumento da população instaurou-se uma monarquia em cada uma das regiões. Neste momento, o Este é governado pelo Rei Raphael Boa Paz, casado com Josefina Boa Paz, fIlha da Casa Fide do Norte. É normal de quando a quando haver casamentos entre as principais Casas de cada região, ajuda nas relações diplomáticas e comerciais. Aqui na Ilha valorizamos muito a paz e a cooperação económica entre as regiões e até agora não nos podemos queixar. Bem, há quem diga que no Norte há uns revolucionários republicanos a tentar chegar ao poder, mas parecem-me boatos, e mesmo que sejam verdadeiros devem ser um conjunto de gatos-pingados que não fazem mal a uma mosca.

– E quem governa esse tal Norte?

Manuel tinha gosto em tagarelar por isso não se ralava nada de dialogar nestes termos. Porém, depois de já ter dado ao desbarato um considerável investimento em consumo salivar, até ele começou a estranhar a desmedida curiosidade da sua visita. Não queria responder a mais nenhuma pergunta sem antes saber com quem falava. Nesse sentido, usou do seu talento diplomático para virar o sentido do interrogatório:

– Vai-me desculpar, mas tenho muito peixe para levar para o Centro, estamos quase a chegar a Buonipachem e ainda não sei uma coisa – e finalmente, fez a pergunta que não queria calar – Quem é o senhor?

O Náufrago parecia ter muito mais para contar que o simples facto de estar ali perdido no Mar há uns tempos. Era indubitavelmente uma personagem misteriosa e parecia carregar alguma dor dentro de si. Olhou para o Mar desanimado e tornou a olhar para Manuel dizendo por fim:

– Ninguém! 

– E aonde vai? Ou para onde quer ir?

– Leva-me ao teu Rei. Já nada tenho com o que deixei para trás…

E o silêncio tomou A Canção do Vento na viagem de volta a Fide, até atracarem no Porto de Galantis. Todos pensavam para si no que se tinha sucedido e ensaiavam teorias várias sobre a história daquele enigmático Náufrago antes de chegar até eles. Já ninguém se lembrava sequer da tempestade.